Aqueles que nos ajudaram a sobreviver quando tudo parecia perdido


Baptista Bastos
Baptista Bastos,in Jornal de Negócios, 28/08/2015
Um país sem memória cultural é um país condenado a todos os gelos. Que livros leram o dr. Passos, o Relvas, o Nuno Melo, o João Almeida, o dr. Cavaco? Que conhecem eles, entre outros mais, de livros, de autores; que poetas frequentam?

Apanho, na Graça, o eléctrico 28 e vou dar uma volta pela cidade, até ao cemitério dos Prazeres. Há muitos anos que não fazia esta bela viagem. Quando morei em Alfama, fi-lo muitas vezes, sempre encantado com os sítios por onde o carro passava. Depois, mudei-me e deixei de percorrer aquele percurso mágico. Houve uma altura em que uma administração da Carris quis acabar com a carreira 28; depois, predominou o bom senso. Antes de apanhar o eléctrico decidi beber um café. As pessoas cumprimentavam-me com simpatia. Vivi por aqueles lados durante muitos anos, e frequentava os cafés da Graça, que ainda hoje entendo ser um dos mais belos bairros da cidade.

Uma vez, há quantos anos?, o Luís Veiga Leitão veio a Lisboa, ele era do Porto, e convidei-o a fazer o percurso do 28. Acabámos, numa taberna, próximo do cemitério, a beber uns e outros. O Veiga Leitão era parente do Miguel Veiga, querido amigo e homem de bem, e levara uma vida aventurosa e de combate contra o salazarismo. Ele, o Egito Gonçalves e o João Apolinário faziam parte de um grupo, “Notícias do Bloqueio”, plataforma de resistência contra o fascismo, contra todos os fascismos.


O Veiga Leitão, entre outros livros admiráveis, publicara um, “Noite de Pedra”, de uma beleza incomum. Passara maus bocados, fora com a mulher, Sofia, para o Brasil, e, lá, chegara a vender enciclopédias, para governar a vida difícil. Era um homem de riso claro e boa disposição. Já ninguém fala nesta gente e o exemplo moral e cultural desta gente não era resgatável. A literatura portuguesa, então, abordava-nos porque fazia parte de nós, mantendo uma tradição que vinha de sempre.

Há tempos no Porto, falei no Veiga Leitão, e poucos sabiam quem era. Está tudo, assim, agora. Um manto de silêncio e de ignorância, como se a nossa identidade própria tivesse sido engolida por um abismo. Gostava de perguntar, a esta gente, quem era este e aquele; mas esta gente não sabe nem cura de saber. E um país sem memória cultural é um país condenado a todos os gelos. Que livros leram e têm lido o dr. Passos, o Relvas, o Nuno Melo, o João Almeida, o dr. Cavaco? Que conhecem eles, entre outros mais, de livros, de autores; que poetas frequentam? Há dias, uma mão amiga fez-me chegar uma página da Revista Ler, de Outubro de 1995, na qual o dr. Cavaco, na altura candidato à Presidência da República, referia “os livros da sua vida.” Ei-los: a “Bíblia”; “Contos”, de Miguel Torga; “Mensagem”, de Fernando Pessoa; Emily Brontë, “O Monte dos Vendavais”; “Jubiabá”, de Jorge Amado; Ruy Belo, “Obra Poética”; Vitorino Nemésio, “Mau Tempo no Canal”; Agustina Bessa-Luís, “Os Meninos de Ouro”; Marguerite Yourcenar, “Memórias de Adriano”; Vergílio Ferreira, “Para Sempre”.

Claro que é uma boa escolha. Mas restará sempre a dúvida se o dr. Cavaco é o verdadeiro autor da lista. Não desejo adiantar mais do que disse; no entanto, deixo ao cuidado do leitor a preocupação de analisar se a bota dá com a perdigota.

A ausência de memória cultural da esmagadora maioria da “classe” política é assustadora. E a resposta da “classe” política é na mesma moeda. De vez em quando, alguns escritores levam uns penduricalhos e ficam muito felizes, mas desacreditados. No tempo do fascismo, havia prémios literários oficiais e vultosos, mas eram raros aqueles que os aceitavam, e os que cediam eram enxovalhados com o desprezo. Estamos na mesma. A pequena vaidade sobrepõe-se à honra e à dignidade da recusa.

O vazio cultural que enreda a sociedade portuguesa é idêntico ao vazio moral. Por vezes, muitas vezes, recordo aqueles que construíram um território de integridade e de decência, no meio da traição e da ignomínia, e o silêncio em torno desses nomes faz parte da mesma estratégia de ignorância e de desapego que viceja em Portugal, porque o exemplo vem de cima.

Ao falar de Luís Veiga Leitão, falo num exemplo, como muitos outros, que nos ajudaram a suportar o insuportável.

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