QUEM MAIS ORDENA

Alexandre Abreu 
(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 01/07/2015)

No debate dos últimos dias sobre o referendo grego, alguma direita tem procurado lançar a confusão sugerindo que o governo grego pretende referendar o direito dos gregos a disporem do dinheiro dos outros povos europeus. É um argumento que, aliás, está em linha com a ideia de que o mandato anti-austeritário do governo grego não deve ser respeitado, uma vez que é supostamente contraditório com os mandatos democráticos dos restantes governos europeus.
É, claro está, um argumento completamente falacioso. Como a maior parte das pessoas já percebeu, a Grécia não tem qualquer hipótese de pagar a sua dívida pública na ausência de uma reestruturação significativa, independentemente de querer ou não fazê-lo. O que está é causa não é se a Grécia vai ou não pagar a dívida, nem se os gregos devem ou não impor ou não a sua vontade sobre os outros povos europeus. O que está em causa é outra coisa: se os gregos estão ou não dispostos a aceitar a continuação das imposições dos últimos anos, nomeadamente em termos de privatização de activos públicos, perda de direitos e perda de rendimentos, em troca do roll-over dos empréstimos existentes de modo a manter a ilusão da solvabilidade soberana grega e evitar desencadear o processo de saída do euro. No essencial, o que está em causa é apenas isto: fadiga e rejeição da austeridade versus apego ao euro e receio da saída.

Como se percebe, esta não é uma questão que se decida de uma vez para sempre. De cada vez que uma parte substancial da dívida anteriormente contraída vença e que seja necessário proceder a um novo roll-over, será imposto um novo prolongamento da austeridade como contrapartida do prolongamento da ficção de solvabilidade. O jogo está condenado a repetir-se. Em cada momento, o receio das consequências da saída do euro, nomeadamente no curto prazo, constitui um poderoso mecanismo de controlo pelo medo  – mas o prolongamento do status quo é sempre um equilíbrio temporário e, consequentemente, instável. E de cada vez que a questão voltar a colocar-se, as circunstâncias em que isso sucede serão também diferentes, dado a inevitável fadiga crescente da austeridade.
O “não” está por isso condenado a prevalecer – na Grécia como aliás em Portugal, ainda que num horizonte temporal distinto. Não há receio de terra incógnita ou europeísmo abstracto que sustentem a subjugação eterna. Se não for no próximo Domingo, será num outro Domingo futuro.
No imediato, porém, quem quer que valorize a democracia não pode deixar de saudar a decisão do governo grego de dar voz aos cidadãos, permitindo que sejam eles a dizer o que é maior no momento e nas circunstâncias actuais: se o seu apego ao euro e receio da saída, se a sua fadiga e repúdio da austeridade. Sendo sobre eles que recairão as consequências mais directas dessa escolha, quem senão eles deverá tomar essa decisão?
Qualquer que seja o resultado no próximo Domingo, este referendo é por isso e desde já um triunfo da democracia – um triunfo tanto mais importante quanto todas as decisões fundamentais que estiveram na origem da actual encruzilhada foram tomadas nas costas dos cidadãos.
Em nenhum momento os cidadãos gregos – ou portugueses, já agora – foram chamados a pronunciar-se sobre se concordavam com a adesão a uma união monetária que iria comprometer decisivamente o seu processo de desenvolvimento e desencadear uma explosão do seu endividamento externo. Em nenhum momento os cidadãos gregos – ou portugueses, já agora – foram chamados a pronunciar-se sobre se concordavam com a contracção de empréstimos a uma escala sem precedentes junto de credores oficiais internacionais (BCE, FMI e União Europeia) de modo a assegurar que os credores privados não sofriam perdas.
A Europa monetária tem sido uma construção intrinsecamente anti-democrática e intrinsecamente anti-europeia. Os gregos estão na linha da frente da luta contra essa Europa, por uma Europa diferente. Devemos estar ao seu lado – não só por eles como por todos nós.


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